Os Finamores que conheciam o futuro
O Natal tem significados diferentes para cada um, e em cada época da vida. Para minha mãe, Natal era sinônimo de casa cheia – mais trabalho, mais camas para arrumar, mais crianças para sujar a casa, mais comida para fazer. Para nós, crianças, significava casa cheia – mais diversão, mais camas para desarrumar, mais crianças com quem brincar pela casa, mais comida para nos empanturrar.
Os melhores Natais são aqueles em que Papai Noel não é uma metáfora nem uma lenda, mas um ser vivo, palpável, ansiosamente esperado. Morávamos então, com Vô Tote e Vó Rosa, num imenso Hotel Rubim, na praça diante da estação onde ainda havia trens e caixeiros viajantes. Hóspedes iam e vinham todos os dias, e a isso se acostuma quando se vive num hotel. Mas o Natal trazia a categoria mais especial de hóspedes, que são as visitas – tios e primos que vinham Muriaé, Cisneiros, Belo Horizonte, Além Paraíba.
A cozinha se enchia de latas de banha com lombo de porco e lingüiça. Nos grandes refrigeradores, doces de figo, de cidra, potes de compotas e suas caldas. Rabanadas brotavam das frigideiras, bacalhaus saltavam de banho em banho, castanhas estalavam nos batentes das portas (quebra-nozes improvisados). Comia-se como nunca, como se para isso fossem feitos os Natais.
Mas o melhor de tudo, o mais esperado, não era a abundância da comida, a surpresa (nem sempre surpreendente) dos presentes, ou a presença ruidosa das primas. O grande momento para mim era a chegada dos Finamore. Eram tios que não eram tios (mas primos-segundos!), primos que não eram netos dos meus avós e, principalmente, eram pessoas que sabiam o que ainda estava por acontecer.
Primo do meu pai, tio Wanuzzi, médico, morava em Além Paraíba, uma cidade em que bastava atravessar uma ponte para estar em outro estado. Nesse lugar mágico, pegava-se televisão do Rio, não de Belo Horizonte e, naqueles longínquos anos 60, quando ainda não havia transmissão por satélite, as novelas passavam ali dias antes de serem transmitidas em Minas.
Tio Wanuzzi, tia Maria Odete, Luisinho, Wanuzzinho e Marimília chegavam trazendo risadas, presentes e o conhecimento do futuro: quem morreu, quem matou, por que matou, nas novelas que acompanhávamos sem muita distinção do que fosse realidade e ficção. Sabiam antes de todos nós quem era O Rato, sabiam que a megera apenas se fingia de paralítica, sabiam os segredos, as reviravoltas, os desfechos. Eram, ao vivo e a cores, as cenas dos próximos capítulos. Todas as nossas grandes incógnitas eram, para eles, teoremas demonstrados.
Num tempo em que sequer tínhamos televisão em casa (assistíamos, contritos, no grande sofá de Vovô Rubim, avô tão emprestado quando o aparelho de TV), os Finamore não só tinham um aparelho na própria sala para ver quando quisessem, como viam tudo antes de nós. Recebê-los em casa era acolher o oráculo. Minha mãe consultava tia Maria Odete, e eu, numa escala um pouco inferior, tentava arrancar do Luizinho os fatos que ainda estavam por vir – para depois, a meu modo, também levar o conhecimento do futuro aos vizinhos, aos colegas da escola. Eu me tornava Finamore de segunda mão, mas enfim...
Mesmo decorridos 40 anos, jamais consegui ver os Finamores, mesmo daqueles que nunca freqüentaram nossa casa e nossos Natais, como um simples parente. Eram, e continuarão sempre sendo, uma espécie de super-primos, super-tios. Não bastasse terem um sobrenome italiano, eram capazes de enxergar outro estado apenas olhando do quintal. E (ó inveja!) sabiam de antemão o que ainda estava por acontecer.
Escrito por Sidney Eduardo Affonso
quinta-feira, julho 27, 2006
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2 comentários:
Este texto maravilhoso do Sidney, sempre colaborador do blog, invoca um tempo maravilhoso em que os presentes e as comidas eram importantes, mas muito mais ainda aquele espírito de confraternização, de encontro, de re-encontro, de amizade.
E lembra da diferença de transmissão dos programas naqueles anos, nem tão assim longíquos.
E lembro em Cisneiros, quantas crianças na frente da casa dos Finamore assistindo a TV, uma novidade.
Entrar en ese pasado es mágico, gracias por compartirlo.Leer es estar en Minas, comer su comida, oler sus aromas, escuchar sus voces y sonidos característicos, ver sus niños de los años ´60... Sabía de la existencia de esos parientes y de su "aura". Todo muy vívido y "saudoso", pero con una "saudade" dulce, tranquila y presente. Obrigada por seu texto!!!
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